Vacinas: só 44% dos indígenas estão imunizados
Publicado em Outras Palavras | Por Diego Junqueira e Isabel Harari, na Repórter Brasil
Fake news, influência de igrejas e discurso antivacina. Grupo prioritário, menos de metade dos aldeados no país tomaram as duas doses. Governo atrasou quatro meses a vacinação de jovens e quase provoca desastre em escolas
Por muito tempo, as fake news fizeram Patkore Kayapó ter medo da vacina da Covid. Delia Benites temeu morrer, mesmo imunizada, após a filha adolescente carregar o vírus da escola para casa. Já Edney Samias se preocupa com os parentes evangélicos não vacinados, e tenta convencê-los a tomar a primeira dose. Os três indígenas vivem em diferentes partes do Brasil, mas compartilham uma experiência comum: assistem diariamente ao fracasso do governo federal em imunizar os indígenas contra o coronavírus.
Quase um ano após o início da campanha, o Ministério da Saúde ainda não foi capaz de completar a imunização nem da metade dos 755 mil que vivem em Terras Indígenas (TIs), mesmo eles sendo parte do grupo prioritário de vacinação. Apenas 44% dos aldeados receberam as duas doses da vacina contra a Covid, segundo levantamento da Repórter Brasil com base no monitor de vacinação indígena, que traz os dados da população adulta, e no mais recente informe epidemiológico da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), que informa sobre a imunização dos adolescentes, ambos do Ministério da Saúde. Não há dados sobre doses de reforço.
O ritmo de aplicação é mais lento que o da população geral, já que 65% dos brasileiros estão completamente imunizados, segundo o consórcio de veículos de imprensa, e 9% receberam o reforço. Considerando apenas a 1ª dose, a vacinação alcançou 50% dos indígenas que vivem em TIs no dia 20 de novembro, data em que a dose inicial já havia chegado a 74% dos brasileiros. Os dados referem-se à população total, o que inclui todas as crianças e adolescentes.
O baixo ritmo de imunização dos indígenas deve-se às fake news, à influência de igrejas evangélicas nas TIs e ao discurso antivacina do presidente Jair Bolsonaro (PL), de acordo com lideranças, organizações indígenas e especialistas em saúde pública ouvidos pela reportagem. Além disso, eles apontam a incapacidade do Ministério da Saúde em barrar essa onda negacionista e sua lentidão com a vacinação dos adolescentes indígenas, iniciada com quatro meses de atraso.
“Nós Kayapó ficamos com medo de tomar a vacina. Vimos notícias nos jornais e nos grupos de WhatsApp falando que a vacina não é boa e que prejudica”, conta Patkore Kayapó, presidente da Associação Floresta Protegida (AFP), organização que representa 36 aldeias da etnia no Pará – essa é a região indígena com vacinação mais atrasada no país. Ele tomou a vacina em junho, cinco meses após o início da campanha.
Negacionismo e atraso
A resistência de Patkore e de outros indígenas está mais relacionada aos discursos negacionistas atuais e ao contexto político. Isso porque, historicamente, a vacinação é bem aceita entre os indígenas. A pesquisadora Ana Lúcia Pontes, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), lembra que, na campanha da Influenza em 2020, foram vacinados 94% de todos os indígenas acima de seis meses (público-alvo da campanha) em três meses.
“Essa comparação mostra que a saúde indígena tem estrutura capaz de funcionar e que os indígenas têm experiência concreta de que a vacinação salva vidas. Fica claro que houve algo destoante nesta campanha da Covid”, diz Pontes. “O que nos preocupa é o contexto geral [de erros] no enfrentamento e a falta de planejamento [do governo]”.
O mais recente capítulo do descaso se verificou na vacinação dos adolescentes indígenas, que só foi liberada pelo Ministério da Saúde quatro meses após a Anvisa autorizar a aplicação na população de 12 a 17 anos. Enquanto diversas cidades iniciaram essa vacinação em junho, a campanha dos indígenas começou, a conta-gotas, apenas no final de outubro.
Segundo o último boletim da Sesai, dos 34 distritos de saúde indigena, apenas 15 aplicaram doses nesse grupo. Com isso, só 22% dos adolescentes receberam a primeira dose até 27 de novembro. Como comparação, entre os não indígenas, 70% receberam a dose inicial e 23%, a segunda.
Esse atraso quase terminou em desastre na casa de Delia Benites, que vive na TI Guasu Guavirá, em Terra Roxa (PR).
Após 20 meses de pandemia, o retorno presencial das três filhas à escola era motivo de alegria até sua filha Marlene, de 12 anos, dar os sinais do coronavírus em outubro: muita dor de cabeça. Como a dipirona não dava conta da dor, a jovem foi levada a um hospital, onde testou positivo para Covid.
“Depois que a Marlene passou mal, foi a vez da minha filha mais velha, Denise, de 15 anos. Depois passou para a Arlene, de 9, e no final fui eu. Peguei e quase morri. Fiquei 15 dias de cama, sendo uma semana no hospital”, conta a mãe, que já havia tomado as duas doses.
A família guarani é o retrato de como os indígenas não foram tratados como prioridade pelo governo federal – embora o STF tenha feito essa determinação. As filhas de Delia poderiam ser vacinadas desde junho, mas receberam as doses apenas em novembro, após adoecerem. Tampouco houve atenção no âmbito municipal. Terra Roxa iniciou a vacinação de adolescentes em 22 de setembro, com foco em alguns grupos prioritários, mas deixou os indígenas de fora.
“Os alunos precisam da aula presencial, mas também precisam estar protegidos. Não tem vacina para as crianças menores, e para os adolescentes demorou a chegar”, lamenta Delia, que espera por sua dose de reforço.
O atraso com os adolescentes é crucial para entender por que o Brasil deve encerrar 2021 sem vacinar metade dos indígenas aldeados: nas TIs, os jovens com menos de 18 anos são quase 50% da população. Por isso, eles não poderiam ser negligenciados.
“Mesmo se a vacinação da Covid para maior de 18 fosse um sucesso, não seria possível controlar a circulação viral totalmente porque haveria um grande contingente sem estar vacinado e que continuaria suscetível à doença”, diz Pontes. “Nós alertamos para isso”.
Além da demora do governo, outro problema é logístico, segundo apurou a Repórter Brasil junto a trabalhadores da área da saúde indígena, já que a vacina da Pfizer tem validade de apenas 31 dias em geladeiras comuns.
Com o atraso nessa faixa etária, há relatos de aumento de casos. No final de outubro, os casos de Covid explodiram nas escolas da Reserva Indígena de Dourados (MS), e as aulas foram suspensas temporariamente. Entre 17 de outubro e 20 de novembro foram registrados 226 novos casos no Dsei Mato Grosso do Sul, a mais alta taxa entre os 34 distritos no período.
“Essa demora foi um fator decisivo para o surto em Dourados”, conta um indígena do povo Guarani Kaiowá que preferiu não se identificar. A vacinação em adolescentes indígenas no Estado teve início em 29 de setembro, enquanto a campanha entre os não indígenas da mesma faixa etária começou um mês e meio antes.
No Paraná, o número de casos e mortes entre indígenas vem subindo desde outubro, segundo dados da secretaria estadual de saúde: foram 364 casos e 6 mortes nos últimos dois meses, ante 166 e duas mortes nos dois meses anteriores.
Quem sofre as consequências são os jovens indígenas. Em Terra Roxa, o aumento de casos fez a prefeitura tomar uma medida controversa para controlar o surto: vai deixar de buscar os jovens indígenas nas aldeias para as escolas.
A Repórter Brasil procurou a prefeitura de Terra Roxa (PR),, mas não houve resposta.
A Sesai disse que iniciou o planejamento para vacinar os adolescentes indígenas em julho, mas não comentou por que a campanha do grupo só começou no final de outubro nem sobre o fato de mais da metade dos indígenas aldeados estar sem a vacinação completa. A secretaria ressaltou que 83% dos adultos estão com o ciclo vacinal completo.
Já a Secretaria de Saúde do Paraná afirmou, em nota, que mantém diálogo com o Dsei Litoral Sul e municípios para desenvolver ações de prevenção e controle, e que a vacinação dos povos indígenas ocorre “de forma satisfatória” no estado. Sobre os óbitos, a secretaria observou que os casos recentes afetam principalmente idosos acima de 70 anos, já que eles foram vacinados no início da campanha de imunização, o que aponta para a necessidade de revacinação do grupo.
Fake news e evangélicos
Se na população geral as fake news não minaram a vacinação, entre os indígenas a desinformação saiu vitoriosa, diante da falta de ação do poder público.
“Sem a presença de interlocutores qualificados e comprometidos para enfrentar a desinformação, as fake news prosperaram e se enraizaram”, analisa Adriano Jerozolimski, assessor da Associação Floresta Protegida.
É nesse vácuo de informação técnica que invasores de terras indígenas ganharam espaço e prejudicaram a vacinação. “No grupo dos garimpeiros no WhatsApp cada um fala o que convém”, desabafa um funcionário da saúde que atua no território kayapó, sob anonimato.
Para reverter o cenário de desinformação, a associação publicou cartilhas e podcasts informativos. Uma das estratégias foi a produção de materiais explicando que é possível conciliar a medicina tradicional e científica, já que parte dos indígenas preferiu o uso de remédios ‘do mato’ à vacina. “O remédio [tradicional] protege o meu corpo, mas mesmo assim tomei a vacina”, conta Patkore.
A atividade de frentes religiosas também aparece como entrave à campanha. No Mato Grosso do Sul, indígenas do povo Guarani Kaiowá revelaram que a dificuldade de aceitação da vacina está atrelada à “atuação de algumas igrejas, em especial a igreja pentecostal”.
A influência religiosa afeta também outros povos. “Muitos dos nossos indígenas são evangélicos e têm esse medo, acham que a vacina vai fazer mal, que vão virar jacaré”, diz Edney Samias, liderança Kokama em Tabatinga (AM) que perdeu mais de 100 parentes para a Covid no ano passado.
“Alguns até receberam a vacina, mas foram com a Bíblia orar em cima da vacina. Só que muitos não aceitaram até agora”, completa.
Questionada, a Sesai declarou que, “no início da campanha”, houve “alguns comportamentos contrários à vacina em virtude de informações falsas”, mas que ações de esclarecimento geraram adesão à vacinação.
A Sesai implementou ao longo do ano diversos planos para alavancar a campanha, mas não tiveram o impacto desejado, avalia a pesquisadora da Fiocruz. “Os índices de vacinação subiram até maio, depois foi bem devagar. Fizeram os planos de sensibilização e campanhas de reforço, mas os índices subiram muito pouco. A campanha achatou”, diz Pontes.
A aplicação da dose de reforço, considerada fundamental para o controle da pandemia, também é irregular. Uma liderança Guarani Kaiowá disse à reportagem que a aplicação começou em 27 de novembro em Dourados. Já um Munduruku entrevistado na última semana de novembro não tinha notícia em sua região.
Nesse cenário de ausência do poder público, as organizações indígenas acabaram assumindo a dianteira para tentar convencer os parentes a receber suas doses, mas relataram pouco apoio do governo.
“É nós por nós”, conta Regis Guajajara, conselheiro local de saúde da aldeia Zutiwa, Terra Indígena Araribóia (MA).
Ele destaca que as associações indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Coordenação das articulações dos Povos Indígena do Maranhão (Coapima) foram fundamentais para o enfrentamento da Covid e para a campanha de vacinação.
“O avanço depende de comunicação permanente, o que não aconteceu até agora. A dose de reforço chegou na semana passada, mas está sendo difícil porque os parentes não querem se vacinar por conta das fake news. Tem resistência também de quem não se sentiu bem nas primeiras doses”, diz Regis.
“Na saúde indígena a comunicação é muito quebrada. A gente ficou remando contra a maré”, disse, sob anonimato, um funcionário da saúde que atua no Pará.
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