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Mãe Yanomami recebe corpo de bebê que ficou dois meses no IML

Júnior Yanomami, presidente do Condisi-Y, disse que indígenas da aldeia Onkopiu “estão tristes pela morte e em luto”. Sesai não explica a demora do traslado


Boa Vista (RR) e Manaus (AM) – Uma das quatro mães da etnia Yanomami que pedem o direito de fazer o ritual funerário dos corpos de seus filhos nas aldeias, conforme a tradição da etnia, recebeu o cadáver da criança – uma menina -, na aldeia Onkopiu, na região de Auaris, no território em Roraima, nesta quarta-feira (1º). O Instituto Médico Legal (IML) de Roraima informou à agência Amazônia Real que o corpo do bebê recém-nascido, pertencente ao subgrupo Sanöma, ficou por dois meses na câmara frigorífica, em Boa Vista, aguardando uma posição de traslado da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde.


O bebê morreu no dia 1º de maio de hidranencefalia (acumulação excessiva de líquido no cérebro) e septicemia, no Hospital e Maternidade Nossa Senhora de Nazaré, administrado pelo governo do estado. Sua mãe testou positivo para o novo coronavírus e foi curada. Como o bebê não foi contaminado pelo vírus, seu corpo já poderia ter sido trasladado para o ritual funerário na aldeia.


Outros três bebês, que morreram de Covid-19, foram enterrados no cemitério particular de Boa Vista sem anuência das mães. Para elas, os corpos de seus filhos estavam desaparecidos, como publicou a agência.


Júnior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Yanomami (Condisi-Y), órgão subordinado à Sesai, disse que a mãe Sanöma tinha conhecimento de que o corpo da criança estava no IML, em Boa Vista, e cobrava para ter o direito ao ritual funerário da criança na aldeia. “Até as comunidades estão questionando, chamando, pedindo que a gente mande [o corpo] o mais rápido possível”, disse à reportagem, um dia antes do traslado do bebê.


Questionado sobre o motivo da Sesai não ter feito o translado antes, Júnior afirmou: “quero muito entender por que o corpo ficou e a mãe voltou à comunidade sem ele”. Depois declarou: “Foi um erro de comunicação da Casai-Y”.


De acordo com o documento que a reportagem teve acesso, no dia 5 de maio, a Sesai pediu à direção do IML para manter o corpo do bebê conservado por um período de 15 dias e avisou que, na ocasião, “a mãe encontrava-se em quarentena ficando impossibilitada de fazer a retirada do corpo”. Ela estava internada na Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai) Yanomami, na capital roraimense, se tratando de Covid-19.

Em outro trecho do pedido feito ao IML, a Sesai comunicou que não conseguia fazer o translado do corpo do bebê à aldeia no Auaris. “Informamos que estamos sem previsão de voo para entrada de área dos familiares e do óbito”, diz o documento assinado por uma assistente social.


No dia 19 de junho, a mãe Sanöma foi levada de volta à aldeia Onkopiu sem a sua bebê, que nasceu prematura. A mãe foi um dos 25 indígenas apresentados em um vídeo da Sesai como pacientes curados da Covid-19 que regressavam às aldeias.


A Amazônia Real pediu explicação à Sesai sobre o motivo do corpo da criança ter ficado dois meses no IML, mas a secretaria, que é chefiada pelo coronel da reserva Robson Santos Silva, não respondeu. Ele esteve na quarta-feira (1o.) visitando a região do Auaris cumprindo uma missão interministerial de reforço no combate à Covid-19, acompanhando o ministro da Defesa, general Fernando de Azevedo Silva, e representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai). As equipes, que viajaram de aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB), levaram atendimento médico, medicamentos, insumos, além de equipes de jornalistas de agências internacionais às comunidades Yanomami.


Um dia antes, a direção do IML informou à Amazônia Real que o corpo da menina Sanöma foi liberado na noite de terça-feira (30) para o traslado de avião até a região do Auaris, que fica no município de Amajari.


O Condisi-Y confirmou que o traslado do corpo em avião foi realizado às 11h do dia 1º de julho. O percurso da viagem não durou 2 horas. Não foi informado em que tipo de aeronave foi realizado o traslado, se da FAB ou particular. O translado só ocorreu porque a criança não teve Covid-19, diz o Conselho de saúde.


Perguntado qual foi a reação da comunidade ao receber o corpo da criança Sanöma, Júnior Yanomami disse:


“Foi [para eles], reconfortante receber o corpo de volta, mas estão tristes pela morte. A comunidade inteira está de luto”.


Antes do traslado, a diretora do IML de Roraima, Marcela Campelo, disse à Amazônia Real que não sabia o motivo da demora para a retirada do corpo da bebê. O documento da Casai-Y que pediu a conservação do cadáver estabelecia o prazo de 15 dias, a contar de 5 de maio, para a permanência dele no Instituto. Agora não há mais corpos de crianças indígenas no IML.


​​​​​​​Trasladar corpos de indígenas mortos por Covid-19 não é algo incomum na Amazônia. No dia 18 de junho a liderança Higino Pimentel Tenório, do povo Tuyuka, morreu de Covid-19 em Manaus. Seu corpo foi levado no dia 21 de maio de avião a São Gabriel da Cachoeira, onde foi sepultado, em uma viagem feita pelo Greenpeace, que cedeu a aeronave.

Não é a primeira vez que pais da etnia Yanomami não são informados pelas autoridades de saúde sobre os enterros de seus filhos em cemitérios de Boa Vista.

O primeiro caso do novo coronavírus entre os Yanomami foi registrado em um jovem de 15 anos, no município de Alto Alegre, região de grande incidência de garimpeiros no rio Uraricoera, na região Leste de Roraima. Ele sentiu os primeiros sintomas da doença em 18 de março, passou por diversos atendimentos, chegando a receber alta médica, e só foi testado para a Covid-19 em 6 de abril, morrendo três dias depois no Hospital Geral de Roraima, na capital.


Na ocasião, Dario Kopenawa Yanomami, diretor da Hutukara Associação Yanomami, disse que que faltaram respeito e conhecimento das autoridades sobre as cerimônias tradicionais da cultura indígena. O caso foi denunciado ao Ministério Público Federal.

Para o antropólogo francês Bruce Albert, sepultar vítima Yanomami sem o consentimento de seus familiares “demonstra uma grave falta de ética e uma total ausência de empatia das autoridades sanitárias com o desamparo deste povo face à pandemia de Covid-19”. “Além do mais, dispor de um defunto sem rituais funerários tradicionais constitui, para os Yanomami, como para qualquer outro povo, um ato inumano e, portanto, infame”.


O MPF abriu um procedimento para garantir a identificação dos corpos dos Yanomami e posterior retorno à terra indígena quando for sanitariamente seguro e se assim desejar a comunidade de origem. À reportagem, nesta quinta-feira (2), o órgão disse que tem feito reuniões com lideranças indígenas e representantes da saúde para tratar sobre o sepultamento de indígenas vítimas da Covid-19. O objetivo, segundo o MPF, é “alinhar protocolos para esses casos com o objetivo de ter maior comunicação, informação e acompanhamento dos indígenas, mas respeitando a saúde das comunidades para evitar riscos”.


Dário Kopenawa Yanomami disse na terça-feira (30) que as mães só foram informadas onde estavam os corpos dos bebês “depois de muita crítica” que elas “foram comunicadas muito tarde”.


Nesta quinta-feira, Dário viajou a Brasília para ter uma reunião com o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, e a deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR). O objetivo é tratar de assuntos relativos aos povos Yanomami no enfrentamento da pandemia do coronavírus, entre eles, a invasão de 20 mil garimpeiros no território.


Além do bebê que estava no IML, a reportagem da Amazônia Real encontrou as sepulturas de outras três crianças Yanomami que eram procuradas pelas mães. Os corpos estão no cemitério particular Campo da Saudade, em Boa Vista.


Estas outras três mães Yanomami ainda aguardam respostas sobre quando irão receber os corpos de seus bebês para fazer os rituais funerários nas aldeias. Duas delas gravaram um vídeo clamando por uma solução. Veja aqui.


Os três bebês que estão enterrados no cemitério Campo da Saudade morreram com suspeitas de Covid-19. Não foi realizada a contraprova do teste, mas a Sesai confirma a causa das mortes: um menino no dia 29 de abril, que nasceu no Hospital e Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth, de responsabilidade do governo de Roraima. Sua mãe testou positivo para coronavírus. O corpo do bebê só foi enterrado três semanas depois do falecimento, em 20 de maio, conforme a documentação que a reportagem teve acesso.


O segundo bebê, um menino Sanöma, morreu no dia 25 de maio. Ele tinha dois meses e foi a óbito com Insuficiência Renal Aguda e suspeita de covid-19 no Hospital da Criança Santo Antônio, administrado pela Prefeitura de Boa Vista.


Um outro bebê menino, também Sanöma, morreu com três dias de nascido no dia 25 de maio, de infecção neonatal, no Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth. Ele foi igualmente enterrado no Campo da Saudade, lado do corpo do outro menino Sanöma, segundo a documentação do cemitério.


Por causa da Covid-19, o administrador Anselmo Martinez, do cemitério Campo da Saudade, explicou que a remoção dos corpos não será realizada devido ao risco de disseminação do vírus. “Só é possível retirar corpos sepultados por via judicial ou se aguardando o tempo mínimo para a exumação, que é de três anos para adultos e dois anos para crianças e recém-nascidos”, disse.


Desde o primeiro caso de coronavírus registrado em abril entre os indígenas Yanomami, 160 pessoas foram contaminadas pela Covid-19 no território entre os estados de Roraima e Amazonas, segundo a Sesai. Quatro mortes são confirmadas por Covid: os três bebês e o jovem de 15 anos. O boletim epidemiológico diz que 101 continuam infectados pelo vírus e em tratamento e 55 yanomami foram curados.

A Rede Pró-Yanomami e Y’ekuana, que faz um monitoramento próprio dos casos de covid-19, aponta cinco óbitos pelo novo coronavírus entre os indígenas e 188 casos confirmados até 2 de julho. Conforme o levantamento, o principal foco de contaminação é a Casai-Y, onde foram confirmados 90 casos da doença. No território Yanomami, foram 49 confirmações e 24 nas cidades de Boa Vista (22), Alto Alegre (1) e São Gabriel da Cachoeira (1), no Amazonas.


Por Emily Costa e Kátia Brasil, da Amazônia Real


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