Indígenas têm o direito de fazer rituais sagrados das vítimas da Covid-19
Publicado por Amazônia Real | por Jullie Pereira
Manaus (AM) – Corpos de indígenas vítimas da Covid-19 e enterrados no cemitério em Boa Vista (RR), sem autorização dos parentes, devem ser exumados para que seus povos cumpram, após dois anos de espera, os rituais de passagem e luto. O Ministério Público Federal (MPF) recomendou que os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) do Leste de Roraima e Yanomami, subordinados ao Ministério da Saúde, respondam em até 20 dias sobre essa demanda. No caso, os corpos deverão ser transladados para aldeias e comunidades de Roraima.
Os povos Macuxi, Wai Wai e Yanomami cobram o direito de fazer as cerimônias de seus entes desde o início da pandemia, em 2020, quando foi aberto inquérito civil para apurar se houve danos morais no sepultamento de indígenas sem o respeito às práticas culturais de luto.
Como publicou a agência Amazônia Real, em abril de 2020, um jovem estudante Yanomami morreu por Covid-19 e foi enterrado no cemitério da capital de Roraima sem que os pais soubessem do sepultamento. Eles não estavam presentes no momento da morte e planejavam levar o corpo do filho para a comunidade em que ele nasceu para realizar o ritual fúnebre tradicional de seu povo.
Em agosto do mesmo ano, indígenas do povo Wai Wai apreenderam uma caminhonete da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e exigiram que os corpos de Fernando Makari Wai Wai, de 58 anos, e Sergio Xexewa Wai Wai, 80, fossem entregues para os sepultamentos em suas aldeias.
A família da líder Bernaldina José Pedro, a vovó Bernaldina, do povo Macuxi, também luta para conseguir enterrá-la na comunidade. Ela foi uma das principais líderes pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e morreu de Covid-19 em junho de 2020.
Estes são apenas alguns dos casos em que indígenas tiveram seus direitos culturais desrespeitados após a morte de parentes, em decorrência da pandemia. Para fazer a recomendação sobre o direito aos rituais, diversas reuniões com lideranças indígenas e especialistas tiveram de ser realizadas ao longo dos últimos meses. Mesmo com a recomendação do MPF, essa exumação ainda vai levar algum tempo para acontecer.
“Sofremos muito com as vidas que o povo Yanomami perdeu. Foi muito difícil, o impacto foi muito grande para comunidade e eles não entendiam como isso era importante”, lembra o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami, que teve de realizar inúmeras reuniões com diferentes autoridades até que houvesse uma compreensão da importância dos rituais fúnebres. “Cabe ao Dsei Yanomami acelerar esse processo de exumação e até agora nós estamos esperando, vai demorar mais 40 dias para devolver o corpo, porque nem iniciaram o processo ainda.”
O secretário da Sesai, Robson Santos da Silva, explicou à Amazônia Real que deve analisar a viabilidade da ação e que não é contra a exumação dos corpos. “A nossa questão é a parte sanitária, sabemos que a doença ainda está aí e não sabemos qual o nível de contaminação que o corpo pode dar, qual o impacto de abrir a urna, fazer o transporte. Havendo a viabilidade vamos fazer de tudo para atender, não há nenhum motivo para não atender”, declara.
“Tolher tais povos dos seus atos tradicionais é uma maneira de violentá-los e de privá-los de sua forma de se despedir de seus entes queridos, ou, como afirmam os Yanomami, ‘pôr suas cinzas em esquecimento’”, diz o procurador da República Alisson Marugal, que expediu a recomendação do MPF na última quarta-feira (12).
Júnior Hekurari, do Condisi-YY, relata que houve muito sofrimento com as mortes, agravado por não poder cremar os corpos dos parentes. De acordo com dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), até sexta-feira (14), 63.303 mil indígenas foram infectados com a doença e 1.254 mil morreram em decorrência dela. Cento e sessenta e dois povos foram afetados.
Em abril de 2020, a Comunidade Indígena Xaari moveu uma ação alegando que os artigos 215 e 231 da Constituição Federal de 1988 garantem que o Estado deve proteger as manifestações das culturas populares indígenas e afro-brasileiras. O texto constitucional, em seu artigo 231, é explícito: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
A comunidade também usou como argumento a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que pertence ao ordenamento jurídico e determina que os Estados considerem as especificidades dos povos tradicionais ao aplicar a legislação nacional. “Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos”, acrescentou a comunidade, na ação. O MPF acatou os argumentos dos indígenas.
Cobrança por agilidade
Apesar disso, a expectativa dos líderes é de que ainda demore cerca de 40 dias para que os familiares possam finalmente realizar seus rituais. Questionado sobre a demora em conceder o direito aos indígenas, Robson Santos da Silva garantiu que “não foi por maldade” e que compreende a importância da despedida para os povos indígenas. “Tinha uma portaria conjunta do Supremo Tribunal Federal (STF) que trazia as recomendações de funeral. A gente reconhece as especificidades dos indígenas, mas havia uma portaria a ser cumprida.”
De acordo com o MPF, o Instituto Médico Legal da Polícia Civil de Roraima expediu parecer técnico atestando a viabilidade da exumação e transporte dos corpos, desde que as medidas sanitárias sejam adotadas, com os corpos dentro de sacos ou urnas fechadas até o local exato da cremação. Ainda de acordo com o órgão, a Comissão de Assessoramento Técnico do Departamento de Vigilância Sanitária da Secretaria Municipal de Saúde de Boa Vista também emitiu documento atestando a seguridade do transporte até as aldeias das famílias que fizerem a solicitação.
‘Não precisa fazer investigação’
O médico sanitarista Douglas Rodrigues, do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que não é necessário fazer investigações profundas sobre a viabilidade para a exumação dos corpos. Rodrigues explica que quanto mais tempo demora, maior é o sofrimento para os povos indígenas.
“Basta o secretário fazer uma consulta aos especialistas para saber se há algum risco de infecção. Para os povos indígenas, quanto mais tempo demora, mais tempo se prolonga o sofrimento. Isso foi uma sucessão de equívocos que têm a ver com a pouca compreensão que se tem a respeito dos povos e a relação da cultura”, diz.
O médico critica a falta da relação intercultural dentro da Sesai e defende que a habilidade de empatia pelos povos indígenas seja primordial para a criação de medidas dentro do cenário da pandemia. “Eu vejo que o subsistema de saúde indígena foi criado para adquirir essa competência cultural, no trato da relação intercultural. Esperamos que todos os agentes desenvolvam essa habilidade, não tem sentido ter uma estrutura voltada para os indígenas que replica práticas da nossa cultura. Tem que ter essa capacidade intercultural, senão é inválida.”
Rodrigues trabalha com populações indígenas em isolamento voluntário na Amazônia há mais de 50 anos. Após anos de contato com os indígenas, ele explica que há enorme preocupação com os espíritos dos entes que morrem sem o devido ritual de luto e morte. “Imagina essa mãe, essa avó, que estão preocupados com o que possa ter acontecido com os espíritos desses familiares. Tem também uma dimensão da própria comunidade, porque isso tem a ver com o equilíbrio, e esse equilíbrio tem a ver com a floresta, com a saúde”, explica.
Bebês “desaparecidos”
O médico também cita, como exemplo do descaso e da falta de empatia pela cultura indígena dentro do contexto da pandemia, o caso em que os corpos de três bebês yanomami foram enterrados sem autorização dos pais e ficaram perdidos por dias até que fosse possível identificar os locais em que estavam. A Amazônia Real foi o primeiro veículo de imprensa a encontrar os bebês. Três deles foram enterrados em sepulturas comuns no Parque Cemitério Campo da Saudade, em Boa Vista, na capital de Roraima. Um quarto bebê foi encontrado ainda no Instituto Médico Legal (IML).
Na época, a hashtag #criançasyanomami foi parar no topo dos trends topics do Twitter, após entrevista em que uma das mães das crianças pedia para que seu filho fosse devolvido.“Sofri para ter essa criança. E estou sofrendo. Meu povo está sofrendo. Preciso levar o corpo do meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”, diz.
A reportagem da Amazônia Real passou três dias buscando os corpos das crianças entre 26 e 28 de junho de 2020. Um deles havia morrido por insuficiência renal respiratória aguda e pneumonia extrema em 29 de abril, um dia depois de nascer. A mãe tinha adquirido a Covid-19 durante a gestação. O corpo do bebê só foi enterrado três semanas depois do falecimento, em 20 de maio, conforme a documentação a que a reportagem teve acesso.
Cenário epidemiológico
Roraima é o quarto estado com mais mortes de indígenas, de acordo com dados da Apib. São 126 óbitos registrados. À frente estão o Amazonas (254), Mato Grosso (162) e Mato Grosso do Sul (130). Em Roraima, o povo mais afetado até o momento é o povo Macuxi, com 20 mortes confirmadas.
Entre as cidades mais afetadas, Boa Vista aparece em segundo lugar, com 25 mortes. Manaus está em primeiro, com 54 óbitos. Para saber mais sobre as histórias de indígenas vítimas da Covid, é possível ler relatos transcritos no livro “Pandemia e Território”, que pode ser acessado pela internet e foi desenvolvido dentro do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia.
Os relatos foram coletados por 120 estudiosos que desenvolvem pesquisas na Amazônia. São mais de 100 obituários que contam histórias de quilombolas e indígenas, além de 57 artigos escritos pelos pesquisadores. O livro já está na terceira edição.
O livro também traz textos redigidos por organizações indígenas, como o texto “A Quem Interessar: o Povo Indígena Kokama na Guerra Contra o Coronavírus”, da Federação Indígena do Povo Kukami-Kukamira Pray+iuka Perukariai Kurumpiaka e do Cacicado Geral do Povo Kokama.
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