Em 2020, 776 crianças indígenas morreram de causas evitáveis
Relatório de Violência contra os Povos Indígenas, do Cimi, evidencia a vulnerabilidade dos povos da floresta e o caráter genocida do governo Bolsonaro. A imagem acima feita no Cemitério Parque da Saudade, em Boa Vista onde foram enterradas as crianças Yanomami vítimas da Covid-19
Publicado no Amazônia Real por Cristina Ávila em 29.10.21
Crédito: Emily Costa/Amazônia Real/25//06/2020
Brasília (DF) – Um ano trágico para os povos originários do Brasil – 2020 se expressa em números vergonhosos de mortes e agressões e em situações que evidenciam o caráter genocida do presidente da República Jair Bolsonaro. Essa é a síntese do Relatório de Violência contra os Povos Indígenas, lançado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na tarde de quinta-feira (28), em Brasília. O documento denuncia que 776 crianças indígenas com até 5 anos morreram em 2020 no Brasil de causas evitáveis, como o novo coronavírus, anemia, diarreia, desnutrição, pneumonia e morte sem assistência. Entre elas, 250 no Amazonas, 162 em Roraima e 87 no Pará, que tiveram mais da metade dos casos de mortalidade infantil indígena registrados em 20 Estados brasileiros.
Reportagens publicadas pela Amazônia Real já revelaram um dos lados mais cruéis expressos no relatório do Cimi. Em junho de 2020, a agência denunciou que corpos de três bebês Yanomami foram enterrados em cemitério de Boa Vista (RR), sem o conhecimento das famílias. Morreram por Covid-19 ou suspeita de contaminação, mas com certidões de óbito diversas.
Os corpos encontrados eram de bebês que morreram em hospitais da capital roraimense. As mães consideravam os filhos desaparecidos, pois não haviam sido informadas ou consultadas sobre os sepultamentos. Aflitas, elas queriam levá-los de volta às aldeias, para rituais funerários próprios de sua cultura.
Os dados do relatório do Cimi foram obtidos na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), com base na Lei de Acesso à Informação, que torna obrigatória a divulgação de dados pelo poder público. Entre o total de mortes no País, 14 ocorreram por “infecção por coronavírus”, 7 por “Covid-19” e 8 por “síndrome respiratória aguda grave”. Segundo o documento, “estão assim segmentados os dados fornecidos, o que não deixa claro se todos esses casos foram mortes ocorridas em decorrência da pandemia”. Essas 29 vítimas tinham entre 0 e 3 anos.
O Cimi informa que 183 óbitos ocorreram por desidratação, desnutrição, diarreia ou diferentes tipos de pneumonia, em 13 estados de todas as regiões brasileiras, e 21 mortes de zero a 5 anos tiveram como causa registrada “morte sem assistência”, no Pará (1), Roraima (2), Amazonas (5) e Mato Grosso (13).
Outra violência contra os povos originários apontados no Relatório de Violência são os 182 assassinatos de indígenas. Ou seja, mais de 15 a cada mês. Roraima (66), Amazonas (41) e Mato Grosso do Sul (34) são os Estados com maior número de casos, que significam 61% a mais do que as ocorrências de 2019, quando foram registrados 113.
Duas ocorrências de assassinatos coletivos se destacam. Em Mato Grosso, quatro indígenas do povo Chiquitano foram mortos enquanto caçavam na fronteira com a Bolívia, por agentes do Grupo Especial de Fronteira (Gefron), da Polícia Militar. Investigações indicam que sofreram torturas antes de serem executados. No Amazonas, uma ação da PM na região dos rios Abacaxis e Marimari resultou na morte de dois homens do povo Munduruku, consequência de conflito provocada por pesca esportiva não autorizada. Morreram ainda quatro ribeirinhos e dois policiais.
1.236 indígenas assassinados
Esses tipos de dados estão disponíveis também na plataforma Caci (Cartografia de Ataques Contra Indígenas), vinculada ao site do Cimi. É uma sigla, mas também uma palavra que significa dor na língua guarani. Esse é um mapa digital que reúne informações sobre assassinatos e que foi atualizado a partir do relatório divulgado nesta semana. Com a inclusão dos números referentes a 2020, passam a abranger informações georreferenciadas sobre 1.236 assassinatos de indígenas, reunindo dados compilados desde 1985.
O Relatório de Violência vincula crimes com a presença de invasores e aponta que em 2019 foram registradas 256 invasões em territórios indígenas, e que no ano passado ocorreram 137% na comparação com 2018. “Este foi o quinto aumento consecutivo registrado nos casos do tipo, que em 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados”, diz o documento. As invasões repetem padrões, com devastação de rios inteiros na busca pelo ouro e outros minérios, desmatamentos e queimadas de imensas áreas para abertura de pastagens. “Em muitos casos, os invasores dividem a terra em lotes que são comercializados ilegalmente, inclusive em terras habitadas por povos isolados.”
A grave crise sanitária provocada pela pandemia, ao contrário do que se poderia esperar, não impediu que grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros invasores ampliassem suas investidas sobre as terras indígenas. O Cimi avalia que em muitos casos a Covid-19 foi levada para dentro dos territórios indígenas pelos invasores, que agiram “livres das ações de fiscalização e proteção que são atribuições constitucional e deveriam ter sido efetivadas pelo poder Executivo”.
“Pode-se dizer que o ato mais violento, no presente, é a premeditação do extermínio”, afirmou a antropóloga Lucia Rangel, coordenadora de pesquisa do Relatório do Cimi. Ela identifica racismo nesses atos e acredita que o relatório colabore para a conscientização da sociedade. “Os povos indígenas não são ninguém, são vassalos, têm que obedecer, não podem reivindicar. Estamos mergulhados numa lama de desrespeito e brutalidade”, acentuou durante a entrevista online de lançamento do relatório.
O presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho, Dom Roque Paloschi, fez a apresentação inicial do relatório, chamando atenção para a sua publicação desde 1996. “Os dados refletem a realidade do segundo ano do governo Bolsonaro, em meio à pandemia”, lembrou. Ele ressaltou a propagação de discursos de ódio de lideranças do Executivo, violando a Constituição para abrir territórios indígenas para a grilagem, a soja, o garimpo e o desmatamento.
Dom Roque Paloschi considera que nenhum governo anterior atuou de forma tão escandalosa e premeditada. Em sua opinião, além de incentivar queimadas nas florestas, o governo Bolsonaro incentivou invasões por garimpeiros em diferentes regiões da Amazônia, com casos mais dramáticos nas terras Yanomami (AM/RR) e Munduruku (PA), com mananciais hídricos contaminados por mercúrio. “O comando para essa saga destrutiva veio do governo federal. Exatamente por isso, o presidente da República vem sendo denunciado internacionalmente pela prática de genocídio”, enfatiza em artigo assinado no relatório.
A apresentação do relatório do Cimi teve a saudação inicial pelo presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Walmor Azevedo. “Juntamos corajosamente, profeticamente, a nossa voz para denunciar tudo aquilo que é crime contra os povos indígenas e tudo aquilo que negocia e rifa os seus direitos”, anunciou.
“Estamos ameaçados de morte”
O documento foi impresso em formato de livro, está online na página do Cimi na internet e também mereceu lançamento online, onde Dario Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami e um dos responsáveis pela campanha “Fora Garimpo, Fora Covid” falou sobre o drama que enfrentam. “Vivemos uma situação muito grave. A Terra Indígena Yanomami tem 9 milhões de hectares, 29 mil indígenas e mais de 20 mil garimpeiros. Já fizemos denúncias ao governo federal, estadual, Ministério Público, Polícia Federal, Funai (Fundação Nacional do Índio), Exército. Estamos ameaçados de morte”, desabafou.
Dario denunciou que os próprios garimpeiros se matam devido a roubos de ouro uns dos outros. “Usam maquinários, álcool, drogas, há cocaína dentro da terra indígena. Levam coronavírus para a terra Yanomami. Estão subindo cada vez mais e já estão a 15 quilômetros de nossos indígenas isolados”, disse.
Segundo Dario, os rios Uraricoera, Mucajaí, Apiaú e Catrimani, os principais em que os indígenas se abastecem, “estão estragados”. Os mananciais estão contaminados por mercúrio e com águas barrentas. “Não tem como tomar água. Os peixes estão morrendo, e os animais que beberem água morrem também. As crianças tomam banho e ficam com coceiras e doenças estranhas, e quando tomam água ficam com dor de barriga e diarreia. É interesse do governo de acabar com a vida dos povos indígenas. Vai morrer muita gente. E é isso que o governo federal quer”, afirmou. Ele ressaltou que os povos estão mobilizados para barrar projetos como o marco temporal, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) e projetos de lei que tramitam no Congresso para abrir terras indígenas para exploração econômica.
Bolsonaro como genocida
Um dos organizadores do relatório, o coordenador do Cimi na região Sul, Roberto Liebgott, afirmou que as informações desse dossiê embasam a tese que caracteriza o governo Bolsonaro como genocida, uma denominação que foi removida do relatório final da CPI da Pandemia. Segundo ele, esses dados foram coletados em relatos dos próprios indígenas, de missionários e missionárias do Cimi, na mídia, no Ministério Público Federal, nas secretarias de estados e na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
“Esses dados demonstram efetivamente que os povos indígenas estão sendo atacados, como em uma guerra travada contra eles”, afirmou Roberto Liebgott, para quem Bolsonaro tem como padrão a violência no relacionamento com os povos tradicionais. “Incentiva, promove e até financia as violências, promove a devastação, incita a prática de crime contra o próprio patrimônio da União”, que são as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários.
Liebgott acentuou que a Covid-19 representou uma porta aberta para que as invasões se intensificassem. “Há um movimento por dentro do Estado para corroer os direitos indígenas. Nesse ambiente, foram dramaticamente impactados, com 900 mortos, 43 mil contaminados em 2020. A pandemia, além de levar vidas pelo contágio, abriu as portas para invasores e outros crimes. Registramos 182 assassinatos. Situação dramática imbricada com a perspectiva de Estado para consolidar uma anti-política que leva ao genocídio efetivo.”
Segundo o missionário, o relatório pode ser dividido em blocos bem definidos que comprovam a prática genocida. “As invasões possessórias, os conflitos fundiários que aumentaram em 174% em 2020, passando de 35 para 96 casos, os assassinatos que aumentaram em 61%, a omissão e a morosidade na demarcação dos territórios. Registramos 832 casos relativos a omissões do poder público no que se refere a direitos territoriais. É um conjunto de informações que nos dão a certeza de que os povos indígenas são vistos como inimigos do governo. Ontem (27), o presidente Bolsonaro foi a Roraima dentro de um território indígena para anunciar a abertura do garimpo e que não vai medir esforços para rever a demarcação das terras indígenas”, disse Liebgott.
O relatório enfatiza que “as violências praticadas contra os povos indígenas e seus territórios são condizentes com o discurso e as práticas de um governo que tem como projeto a abertura das terras indígenas a exploração predatória, atuando no sentido de disponibilizar essas áreas para a apropriação privada e favorecendo os interesses de grandes empresas do agronegócio, da mineração e de outros grandes grupos econômicos”.
Omissão do poder público
Segundo o Cimi, essa é uma opção política assumida pelo governo Bolsonaro e é evidenciada por medidas como o Projeto de Lei 191, apresentado pelo Executivo ao Congresso em fevereiro de 2020 para permitir a abertura das terras indígenas à exploração mineral, e a Instrução Normativa 09, publicada pela Funai em abril, permitindo a certificação de propriedades privadas sobre terras não homologadas, o que inclui áreas em avançado estágio de demarcação ou com restrição de uso devido à presença de índios isolados.
“Uma síntese deste cenário desolador pode ser indicada pelo fato de que, embora nem todos os tipos de violência tenham apresentado aumento em relação a 2019, o cômputo geral das categorias ‘violência contra a pessoa’ e ‘violência contra o patrimônio indígena’, em 2020 foi o maior dos últimos cinco anos. No mesmo período, os casos de ‘violência por omissão do poder público’ registrados em 2020 só foram menores que os de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro”, enfatiza o relatório do Cimi.
Lúcia Rangel lembrou que as demarcações de terras estão paralisadas há seis anos. “Desde a preparação do golpe, desde (Michel) Temer, nesses governos que acolheram mais forte o agronegócio, os ruralistas e todos os que têm interesse pelos recursos naturais das terras indígenas. Tem terras que há décadas pleiteiam identificação, reconhecimento, e a Funai cada vez mais virou um grande balcão de negócios.”
O Cimi acentua que a paralisação das demarcações foi anunciada por Bolsonaro ainda durante a sua campanha eleitoral e continua sendo uma das diretrizes de seu governo. Das 1.299 terras indígenas do Brasil, 832 (64%) seguem com pendências para regularização. Dessas 536 são áreas reivindicadas pelos povos originários, mas sem nenhuma providência pelo Estado para início de processo administrativo de identificação e delimitação, que são as primeiras iniciativas para a demarcação.
A antropóloga relata que os crimes praticados contra indígenas são cometidos por “governadores, prefeitos que dão até máquinas para lotear territórios tradicionais indígenas, empresários, fazendeiros que cobiçam esses territórios, além de todo um exército de trabalhadores ilegais e violentos, que são garimpeiros, madeireiros que botam fogo em florestas e cometem violências bárbaras. São todos cúmplices. Dizer que não tem genocídio? Tem, sim. E o Cimi denuncia desde o início dos anos 2000, em todas as suas formas de banalização da truculência e da morte”. Ela lamenta que a questão indígena não tenha merecido espaço na CPI da Pandemia.
“Nossos dados são terríveis. Invasões, conflitos, assassinatos, suicídios, mortalidade infantil”, ressaltou Lúcia Rangel. Dados obtidos junto à Sesai apontam 110 suicídios em 2020, 21 mulheres e 89 homens. Os estados com maior número de ocorrências são o Amazonas (42), Mato Grosso do Sul (28) e Roraima (15). Embora sejam preliminares, sujeitos a alterações e também não ofereçam detalhes como identificação de povos e de territórios, os dados mostram que “as vítimas têm entre 10 e 70 anos e morreram por enforcamento, estrangulamento ou sufocação e também por lesões causadas por objeto contundente por disparo de arma de fogo”. Em 2020, foram registrados casos em estados que não estavam nesta lista em 2019: Bahia, Espírito Santo, Paraíba e Rio de Janeiro.
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