Coronavírus: O que podemos aprender com um xamã da Amazônia? Parte 5: A força da cura
Por: Elvira Eliza França | 08/06/2020 às 22:00
Como foi constatado anteriormente, a força de cura de um xamã depende dos xapiris que dançam para ele, sendo que a presença desses seres espirituais depende das condições favoráveis do meio ambiente na floresta. Quando os xapiri vêm dançar para um xamã, não está só beneficiando a sua comunidade, mas toda a humanidade, porque os fios brilhantes dos caminhos que eles criam no trajeto entre a montanha e a floresta, se espalham por todo o planeta, protegendo todos os seres vivos que nele vivem. Os xapiri também não são únicos e trazem consigo uma multidão de filhos, sendo que cada um tem um papel importante no processo de cura, inclusive o morcego. É nesse animal que os cientistas identificaram a mutação que gerou a Covid-19.
É por isso que o xamã Yanomami Davi Kopenawa tem se empenhado tanto em defender a floresta em seu estado natural, com a permanência dos metais nas profundezas da terra, com a presença das árvores ancestrais na floresta, das águas limpas nos rios, dos animais filhos dos xapiri, e dos povos tradicionais que cuidam de tudo isso. Essas condições são favoráveis para atrair a presença dos xapiris mais antigos, que promovem a vida e a saúde, e são mais fortes para combater as xawara, as epidemias. Assim, com as condições adequadas do meio ambiente, os xamãs com os xapiri podem cumprir com o objetivo da criação dada por Omama para proteger todos os seus filhos humanos, afastando deles os males da doença e da morte.
“Os brancos não entendem que, ao arrancar minérios da terra, eles espalham um veneno que invade o mundo e que, desse modo, ele acabará morrendo” (p. 357). Os minérios são lascas do sol, da lua e das estrelas, e é por isso que entre os Yanomami recebem o mesmo nome das estrelas maraxi ou xitikarixi. Esses minérios, segundo a mitologia Yanomami, estão impregnados de tosses e febres e foi justamente por isso Omama os escondeu nas profundezas da terra, para que não envenenassem as pessoas. Quando aquecidos, liberam uma fumaça amarela que cria a epidemia e mata quem a respira. Eles foram colocados nas profundezas da terra, juntamente com as doenças, o choro da morte e do luto.
“Os minérios ficam guardados no frescor do solo, debaixo da terra, da floresta e de suas águas. Estão cobertos por grandes rochas duras, pedregulhos, ocos, pedras brilhantes, cascalho e areia. Tudo isso contém seu calor, como uma geladeira de vacinas. Já disse: essas coisas caídas do primeiro céu são muito quentes. Se forem todas postas a descoberto, incendiarão a terra. Esfriando no solo elas só exalam um sopro invisível, que se propaga por suas profundezas como uma brisa úmida. Mas quando a floresta se aquece sob o sol, esse sopro pode se tornar perigoso. É por isso que [o calor dos metais] deve permanecer preso no frio do solo, onde as pedras e a areia, como uma tampa de panela, retêm seu vapor maléfico e o impedem de se espalhar” (p. 360).
A violação desses locais sagrados da natureza, que provoca a fumaça da epidemia é a mesma que deixa os pensamentos das pessoas cheios de escuridão, fazendo com que elas não enxerguem uma outra realidade, a não ser a da mercadoria. Por isso, o xamã Davi Kopenawa Yanomami chama os brancos de “Povo da Mercadoria” e vem alertando a todos, há tempos, sobre os riscos que isso representa para a vida da humanidade. Ao mesmo tempo, cientistas e ambientalistas vêm alertando sobre os perigos do aquecimento global, dentro de outra perspectiva, mas com o mesmo objetivo.
“Esses pensamentos me atormentam muito. Por isso, levo em mim as palavras de Omama para defender a floresta. Os brancos não pensam nessas coisas. Se o fizessem, não arrancariam da terra tudo o que podem, sem se preocupar. É para acabar com isso que quero fazer com que eles ouçam as palavras que os xapiri me deram no tempo do sonho” (p. 361).
Davi Kopenawa conta que, quando foi acometido pela malária, ardendo em febre, viu o “pai do ouro e dos outros minérios” e chegou até onde estava o espírito da terra Maxitari, que fica no profundo mundo subterrâneo: “a imagem do pai do ouro é gigantesca e impregnada de fumaça de epidemia. Trata-se de um ser maléfico assustador e feroz, capaz de nos cortar a garganta, de dilacerar nossos pulmões e de secar nosso sangue. Os brancos têm que saber disso e desistir de se apoderar do metal de Omama. Talvez seja o mais belo e o mais sólido que eles possam encontrar para fabricar suas máquinas e mercadorias, mas é perigoso demais para os humanos” (p. 361-2).
“É por isso que a fumaça dos metais, do óleo dos motores, das ferramentas, das panelas e de todos os objetos que os brancos fabricam se misturam e se espalham por suas cidades. Esses vapores, quentes, densos e amarelados como gasolina, colam no cabelo e nas roupas. Entram nos olhos e invadem o peito. É um veneno que suja o corpo dos brancos das cidades, sem que o saibam. Depois, toda essa fumaça maléfica flui para longe e, quando chega até a floresta, rasga nossas gargantas e devora nossos pulmões. Queima-nos com sua febre e nos faz tossir sem tréguas, e vai nos enfraquecendo até nos matar. Antigamente, pensávamos que chegava até nós sem motivo, ao acaso. Mais tarde, porém, nossos espíritos xapiri viajaram até as remotas terras dos brancos. Lá viram todas as suas fábricas e nos trouxeram palavras delas” (p. 363).
Segundo o xamã Yanomami, a fumaça dos minérios é a mesma fumaça das epidemias wawara, das doenças dos brancos, que é liberada do vapor maléfico dos metais. “Tudo isso se mistura, para se tornar uma única epidemia xawara, que dissemina por toda parte febre, tosse e outras doenças desconhecidas e ferozes que devoram nossas carnes. Essa xawara que invade a floresta inteira vai fazer de nós tatus esfumaçados para saírem da toca! Se o pensamento dos brancos não mudar de rumo, tememos morrer todos antes de eles mesmos acabarem se envenenando com ela!” (p. 363).
Na verdade, o que nós chamamos de poluição é, para o xamã, muito mais, pois é essa perigosa “fumaça da epidemia xawara. Nossos xapiri tentam incansavelmente atacá-las e empurrá-las para longe da floresta, mas elas não param de voltar. Para nós, xamãs, é um grande tormento não conseguir repeli-las. Se elas nos matarem todos, ninguém poderá compensar o valor de tantas mortes. Nossos mortos são já muito mais numerosos no dorso do céu do que nós, vivos, na floresta. Nem o dinheiro nem as mercadorias dos brancos os farão descer de novo entre nós! E a floresta devastada tampouco poderá jamais ser curada, ficará ferida e doente para sempre” (p. 365-6).
No capítulo 16 “O ouro canibal”, do livro “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”, há uma descrição mais minuciosa de como é feito o ataque da epidemia xawarari e das reações que a vítima sente no corpo. Mas essa descrição não merece ser exposta aqui, nesse momento em que todos temos que nos fortalecer para pedir que os governos de todos os países ajam com sabedoria nesse momento emergencial de enfrentamento da pandemia do coronavírus.
O resgate dos conhecimentos dos povos tradicionais do mundo todo e não somente dos Yanomami, certamente, poderá ajudar a trazer a sensatez, equilíbrio e sabedoria para que aqueles que presidem os países, e os que governam os estados e administram os municípios. O respeito a todos os seres, inclusive os seres espirituais como os xapiri e seus filhos (como o morcego), é algo que merece ser considerado, até porque as epidemias acabam, mas depois retornam.
Assim, é importante assegurar as condições adequadas no meio ambiente para os xamãs atraírem os xapiri para dançar e cantar. Os caminhos deles feitos com fios brilhantes, que protegem a floresta e todo o planeta e os seres que nele habitam, são fundamentais para assegurar a saúde de todos e afastar os perigos das epidemias (xawara). Mas é fundamental, ainda, assegurar a demarcação e proteção dos territórios indígenas, para que os xamãs, com suas diferentes estratégias, possam estar em paz e em contato com os espíritos protetores da Terra, trazendo, para o tempo presente, a sabedoria dos ancestrais.
Esta série de artigos é baseada no livro “A queda do Céu: palavras de um xamã yanomami”, de autoria de Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert.
Referência: KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, pós-graduanda em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educacão: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).
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