Coronavírus: O que podemos aprender com um xamã da Amazônia? Parte 2: Criação do mundo e a mitologia
Elvira Eliza França | 06/05/2020 às 21:37
Releio alguns trechos do livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert e relembro algumas figuras mitológicas que conheci durante a leitura que fiz em 2019. Uma delas é Omama, o criador da floresta, dos seres humanos e dos animais; outra são os xapiri, seres espirituais que Omama criou para cuidar de seus filhos, protegendo-os das doenças e da morte. Então pensei: “será que os xapiri, que estão em contato direto com os xamãs, conseguiriam nos ajudar a vencer uma pandemia como o coronavírus, que está assolando todo nosso planeta em 2020, contaminando e matando tantas pessoas e requerendo o isolamento social das pessoas, principalmente os idosos?”
Xamãs são pessoas que passam por um longo processo de iniciação para se tornarem intermediários entre os seres humanos e os seres espirituais, num processo constante de promover a harmonia, assim como proceder a cura, repassando conhecimentos sagrados e tradicionais dos antigos ancestrais para a nova geração. Então, vamos entender o contexto do surgimento do primeiro xamã e de seus espíritos (filhos), para compreender a relação deles com os humanos de um modo geral, no repasse da sabedoria ancestral Yanomami.
Nas palavras do xamã indígena Davi Kopenawa, antes dos seres humanos existirem, houve uma queda do céu no lugar onde hoje está a floresta, e que se tornou muito instável depois disso. Lascas brilhantes do sol, da lua e das estrelas ficaram ali nesse local, de onde surgiu Omama e seu irmão Yoasi, nascidos sozinhos, sem pai nem mãe. Certo dia, Omama foi pescar e retirou das águas a primeira mulher: Paonakare, a filha de Tëpërësiki, um ser que vivia nas profundezas das águas. Omama levou-a consigo e a tornou sua esposa. Mas tanto ele quanto seu irmão tinham muito medo do pai da moça, pois a presença dele produzia sons amedrontadores e assustadores, “como se fosse um furacão ou um trator” (p.222-3).
Um dia, ouvindo o som da aproximação do sogro, Omama transformou-se numa barra de ferro e se fincou no chão para não ser reconhecido pelo sogro. Seu irmão Yoasi fez o mesmo, mas se transformou num pedaço de madeira. O sogro tinha o domínio das plantas, e chegou trazendo um saco com brotos de várias delas para dar de presente ao casal para que plantassem uma roça para alimento e multiplicação da família. Entre as plantas estavam: brotos de bambu, pedaços de mandioca, cará, batata-doce, sementes de milho, mamão, tabaco e outras plantas. Tëpërësiki fez a entrega do saco à filha e, depois de ver as duas barras fincadas no chão, retornou ao fundo das águas (p. 223).
Com o presente recebido, e usando lascas de metais para remexer a terra, Omama fez roça para ter alimentos e com isso pôde criar uma grande família. Certo dia, quando estava trabalhando com seu filho mais velho na roça, o filho sentiu sede e então Omama fez um furo na terra da roça, de onde começou a jorrar água límpida para ele beber. Foi assim que o criador criou as nascentes do rio Parima e do alto do Orinoco, num lugar chamado Hayowari, uma colina.
O irmão de Omama, Yoasi, era maldoso, e criou seres maléficos, doença, morte e luto. Foi justamente para proteger a todos do mal uso dos metais e desses seres maléficos, que os metais mais perigosos foram enterrados por Omama em local bem profundo e seguro, sendo colocado por cima de tudo as montanhas, depois pedras, areia, árvores e animais. Dessa forma, o criador estabilizou o território da ocorrência de tremores e de uma nova queda do céu, impedindo, também, que os vapores subissem à superfície para envenenar as pessoas.
A esposa de Omama ainda ficou preocupada que seus filhos sofressem com doenças e morte: “O que faremos para curar nossos filhos se ficarem doentes? […] A mulher das águas lhe disse então: “Pare de ficar aí pensando, sem saber o que fazer. Crie os xapiri para curarem os nossos filhos” (p. 84). Então, Omama criou os espíritos imortais xapiri para proteger o local onde estavam os metais e também deu a eles a incumbência de proteger seus filhos. “Os espíritos irão afugentar os seres maléficos. Arrancarão deles a imagem dos doentes e as trarão de volta para seus corpos!” (p.84)
Tempos depois, Omama foi na floresta, buscou a casca de uma árvore – yãkoana hi – e produziu um pó que foi misturado com o pó de outras folhas secas e também cinzas. Soprou no nariz do seu primeiro filho Yãkoanari e proporcionou a ele a primeira experiência xamânica: a de ter visões dos xapiri, os espíritos que ele havia criado para assegurar a vida e a saúde aos seus filhos. “Com esta árvore, você irá preparar o pó de yãcoana! […] A força da yãcoana revela a voz dos xapiri. Ao bebê-la, você ouvirá a algazarra deles e será sua vez de virar espírito!” (p.84) “Você também fará descer o espírito japiim ayakora para regurgitar os objetos daninhos que você terá arrancado de dentro dos doentes. Assim, você poderá realmente curar os humanos” (p.85).
Foi assim que o primeiro xamã aprendeu a chamar e a pedir aos xapiri que dançassem e cantassem para ele, para trazer as palavras e os ensinamentos de Omama. Yãkoanari também ficou encarregado de usar esse conhecimento para orientar e ajudar as pessoas a viverem bem e em harmonia com os ensinamentos do criador (p. 84).
Omama, o criador,criou as condições favoráveis para seus filhos viverem felizes e com saúde, e assim pôde ir embora, em direção à nascente do sol, num lugar muito longínquo, para além da Europa e Japão, “lá onde o caminho do sol sai debaixo da terra” para criar outros seres: os brancos (p. 119). Antes, porém, transmitiu aos seus filhos os conhecimentos para produzir os alimentos na terra e também os ensinou a criar instrumentos como lâminas de bambu para cortar, pedaços de madeira para esmagar, ossos dos animais ou espinhos para servir como anzóis, fibras das plantas para amarrar, pedras para afiar, lascas e dentes de peixe para cortar, potes de cerâmica para cozinhar etc.
A família de Omama cresceu. Os instrumentos produzidos por eles eram trocados ou dados de presente entre os filhos. Eles cantavam, faziam festas, eram generosos e falavam boas palavras uns para os outros, caçavam, pintavam o corpo e se enfeitavam para ficar bonitos para dançar e receber outras pessoas e oferecer comida. Tudo o que havia sido ensinado a eles por Omama foi sendo repassado de geração para geração. O ensinamento do uso do pó da yãkoana também era repassado de xamã para xamã.
“Vocês viverão nesta floresta que criei. Comam os frutos de suas árvores e cacem seus animais. Abram roças para plantar bananeiras, mandioca e cana-de-açúcar. Deem grandes festas reahu! [festa intercomunitária]. Convidem uns aos outros, de diferentes casas, cantem e ofereçam muito alimento aos seus convidados!” (p. 76) Omama ainda disse ao seu filho xamã Yãkoanari: “Com estes espíritos, você protegerá os humanos e seus filhos, por mais numerosos que sejam. Não deixe que os seres maléficos venham devorá-los. Impeça as cobras e escorpiões de picá-los. Afaste deles as fumaças de epidemia xawara. Proteja também a floresta. Não deixe que se transforme em caos. Impeça as águas dos rios de afundá-la e a chuva de inundá-la sem trégua. Afaste o tempo encoberto e a escuridão. Segure o céu, para que não desabe. Não deixe os raios caírem na terra e acalme a gritaria dos trovões!” (p. 85-6)
Depois que Omama criou toda a humanidade, incluindo os brancos, ele morreu. Hoje, apenas sua imagem, na forma de fantasma, continua existindo e pode ser vista pelos xamãs mais experientes quando bebem (aspiram o pó) a yãcoana. “É desse modo que devemos pedir nossos espíritos mais poderosos à imagem de Omama e apenas os xamãs experientes podem fazê-lo. […] Omama só nos envia espíritos realmente capazes de enfrentar as doenças e as fumaças da epidemia quando nos tornamos xamãs experientes” (p. 122).
Esta série de artigos é baseada no livro “A queda do Céu: palavras de um xamã yanomami”, de autoria de Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert.
Referência: KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, pós-graduanda em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educacão: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).
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