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As aventuras de Py-Daniel na Amazônia e as saudades que deixa


Na última terça-feira (22), faleceu, em Brasília, o entomólogo Dr. Victor Py-Daniel, um dos primeiros cientistas a pesquisar a doença tropical oncocercose, muito presente no Norte do Amazonas, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Nascido em 1951, Py-Daniel trabalhou entre os anos de 1978 a 2010 no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa) e era um dos maiores especialistas no estudo de insetos, em especial o pium, da família Simuliidae, responsável pela doença oncocercose.


O pium é um inseto que tem o formato de uma mosca minúscula, e é encontrado, com frequência na Amazônia, nos lugares onde há água corrente, límpida e transparente. Por isso, está muito presente em cachoeiras. Também conhecido como borrachudo em outras regiões do país, o pium se alimenta do sangue humano para se reproduzir. A picada desse inseto causa a doença tropical oncocercose, porque ele deposita ovos e o verme se aloja por baixo da pele, ou na pálpebra, gerando uma inflamação que pode causar cegueira.


De origem africana, a oncocercose foi trazida para a América durante o período colonial por pessoas escravizadas pelos europeus. A oncocercose se tornou muito frequente no Caribe e chegou à região Norte do Brasil, na região onde está localizada a Terra Indígena Yanomami. Segundo o doutorando do Inpa, Ulysses Barbosa, 63 anos, que trabalhou por mais de 40 anos nas pesquisas de Py-Daniel, “os indígenas não entendem a demarcação de limites e isso faz com que a doença seja disseminada, tendo se instalado em dois focos: no litoral da Venezuela, e no lado da floresta, envolvendo os indígenas yanomami [o nome significa seres humanos], e entre os Iecoana [Ye’kuana, povos da canoa], que vivem na região e são seminômades”. 


Os sintomas e o tratamento para a oncocercose


O pesquisador Victor-Py-Daniel, que morreu nesta semana (Foto: Ulysses Barbosa/Inpa)


A picada do inseto pium causa um prurido intenso na pele, conjuntivite e inchaço na pálpebra. No processo de pesquisa e contato com esses grupos indígenas, o Dr. Py-Daniel descobriu que a cultura dos Yanomami tinha uma interpretação diferente que aquela dada pela ciência para os sintomas da oncocercose. Num trabalho científico, assinado com a pesquisadora Fabiana dos Santos Souza (2019), menciona que, para os indígenas, os sintomas como a coceira, tinha o significado de veneno ou feitiço; a pele enrugada, causada pela presença do verme na pele, significava incesto escondido; e a cegueira como coisa de velho.


Para compartilhar os conhecimentos científicos com os indígenas, Py-Daniel dava cursos e repassava a eles um outro significado para os sintomas, de modo a motivá-los a realizar o tratamento com os agentes de saúde. Contudo, mesmo quando os indígenas ficavam curados, devido ao fato de terem vida seminômade, saíam do território e entravam em contato com outros grupos contaminados no país vizinho. Por isso, o ciclo da transmissão sofre um processo de continuidade ao longo dos anos.


O medicamento utilizado para o tratamento da oncocercose – que possibilita a interrupção da transmissão do vetor, ainda no início da doença – é a Ivermectina. Contudo, esse medicamento só é eficiente para evitar que as fêmeas se reproduzam e contaminem a corrente linfática do organismo. Mas quando o verme depositado pelo pium fica adulto, o organismo começa a se defender. Então, são formados nódulos fibrosos abaixo da pele, na superfície óssea, geralmente nos ombros, membros inferiores, pelve e cabeça.


Segundo Ulysses, a região do corpo mais contaminada na oncocercose é a crista ilíaca, que fica nos quadris; e a escápula, nos ombros, abaixo do pescoço. O medicamento Ivermectina, utilizado no tratamento, de acordo com a pesquisa de Py-Daniel, precisa ser administrado com o acompanhamento de agente de saúde. O tratamento da oncocercose requer que as doses sejam bem dosadas para evitar danos à saúde das pessoas. Na África, é um medicamento usado no tratamento de cavalos, conforme a literatura científica.


Os riscos do uso indiscriminado da Ivermectina ficaram mais conhecido durante a pandemia do novo coronavírus. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e epidemiologistas fizeram o alerta para o uso inadvertido desse medicamento, que vinha sendo indicado por algumas pessoas para o tratamento preventivo para a covid-19. O uso desse medicamento vem sendo contestado e até mesmo o laboratório fabricante – a Merck Sharp and Dohme – não faz a recomendação de uso para a covid-19.


A pesquisa realizada por Py-Daniel e Fabiana também constatou que os indígenas que vivem na Serra Parima brasileira, que tem uma temperatura média de 18ºC, apresentam uma alta incidência de doenças respiratórias como: gripe, bronquite, pneumonia, asma e tuberculose. Os mais afetados geralmente são as crianças e os idosos. Há grande dificuldade para assegurar a assistência em saúde para os indígenas e, dentre as causas dessa dificuldade, está o fato de a geografia da região ser montanhosa, haver uma grande incidência de chuvas na maior parte do ano, falta de agentes de saúde e de helicóptero para fazer o transporte das pessoas para o local.


Pesquisa científica: da infância para a Amazônia



Victor Py-Daniel, gostava de pesquisar desde a infância. No vídeo no Youtube “A ciência que eu faço”, disse que, quando nasceu, sua mãe previu que ele seria um cientista. Então, a previsão se concretizou. Como o menino vivia num ambiente em contato direto com a natureza viva e com animais, cresceu com a curiosidade aguçada para conhecer os bichos e gostava de desenhá-los e descrevê-los.


No vídeo, o cientista disse como começou suas experiências infantis de iniciação à ciência: “Com seis, sete anos de idade, eu descrevia bichos, ciclos biológicos. Minha mãe foi criada em fazenda. Meu pai com animais também. Então, eu já seguia isso. Eu tenho esses escritos ainda dessa idade, com coisas que eu rabiscava; depois, fui aprendendo o alfabeto e fui descrevendo mesmo o que eu via: aranha… os bichos”.


A curiosidade e o interesse voltado para investigação da natureza viva, levou Víctor Py-Daniel ao estudo das ciências biológicas na Universidade de Brasília (UnB), onde havia um avançado laboratório de parasitologia. Na formação acadêmica, dedicou-se a estudar entomologia, área da ciência dedicada ao estudo dos insetos, e investigava como eles afetavam a saúde humana, em locais de clima quente e úmido, provocando doenças tropicais. Foi ele quem ajudou a criar o Departamento de Biologia na Universidade Federal da Paraíba, onde permaneceu por dois anos, e em 1978 veio para o Instituto de Pesquisa da Amazônia (Inpa).


Incentivando a formação de um parceiro


Ulysses Barbosa (Reprodução Facebook)


Ulysses Barbosa, que trabalha no Inpa há 45 anos, diz que “era o braço direito e as pernas de Py-Daniel, quando ele estava atuando nesse instituto de pesquisa, e sempre o representava, quando o cientista não podia estar presente em algum evento ou reunião”. Ele conta como conheceu Py-Daniel, em 1978, quando ambos começaram a trabalhar no instituto de pesquisa, mas em funções diferentes.

Na época, Ulysses era auxiliar de serviços gerais e trabalhava no biotério, o local onde ficavam os ratos que seriam usados nas pesquisas. Por outro lado, Py-Daniel trabalhava no laboratório de parasitologia, estudando os parasitas. Ulysses conta: “Eu era auxiliar de serviços gerais. Eu só tinha o segundo grau e só depois eu me formei em pedagogia, mas não exercia a profissão. Então, surgiu um trabalho no INPA para trabalhar com roedores e eu comecei em 1978, limpando merda de rato”.


Py-Daniel admirava a dedicação de Ulysses no laboratório e então fez o convite para ele participar das expedições de coleta de insetos, que seriam trazidos para o laboratório de entomologia para serem analisados. Mas Ulysses não tinha autonomia para sair do seu trabalho para realizar as expedições com o pesquisador, que insistia para que trabalhassem juntos. Assim, “nessas idas e vindas, como eu não pude trabalhar com ele, ele se transferiu para o meu departamento para trabalhar comigo”, relembra Ulysses.


Foi assim que começou uma grande parceria entre ambos, o que motivou Ulysses a estudar ciências biológicas, motivado por Py-Daniel. Devido à participação que o auxiliar tinha em várias pesquisas, não precisou sequer fazer o mestrado e foi direto da graduação para o doutorado, porque tinha uma produção científica compatível com a titulação. “Eu tentei imitar o Víctor que também foi assim”. Ulysses conta que Víctor Py-Daniel também não fez mestrado e foi direto da graduação para o doutorado, na Universidade de Brasília, porque tinha uma grande produção científica.


“Ele é meu pai na ciência e tudo o que eu conquistei eu agradeço a ele”. Segundo o que Ulysses relatou, “Py-Daniel sempre botava o nome da equipe toda nas coletas. Ele envolvida todas as pessoas que participavam da expedição, desde o barqueiro, o motorista, o técnico, o biólogo e todos eram registrados na etiquetagem do material. Era um verdadeiro pesquisador, que dava a vida pelo trabalho e sempre agradecia a todos os que coletavam o material para suas pesquisas”.


Uma descoberta científica inédita do pium da Amazônia

Pesquisador Victor Py-Daniel (Foto: Acervo Dr. V. Py-Daniel)


Perguntado sobre uma das coisas que mais o surpreendeu no trabalho com Py-Daniel, Ulysses disse: “Uma das coisas que mais me surpreendeu era a coragem que ele tinha de desbravar toda a bacia hidrográfica, com um barco pequeno, indo a lugares onde poucas pessoas tinham ido até então. Nós fomos para o pico da Neblina fazer o levantamento entomofauno, isto é, da fauna entomológica [a totalidade dos insetos que vivem numa determinada região], e fomos para todas as calhas do rio Negro. O objetivo era saber onde estavam os criadouros dos principais vetores de filarioses [as doenças causadas por picadas de insetos], como a oncocercose e a mansonelose”.


Certamente, havia vários riscos nas expedições que a equipe de Py-Daniel fazia, dentre eles “o risco do barco virar em cachoeiras e se perder tudo e até a própria vida. Ele [Py-Daniel] se dedicava por inteiro. Era muito corajoso. Teve certa vez, numa serra Parima, que ele queria que nós descêssemos de rapel de uma cachoeira. Nós fazíamos isso várias vezes, e nós tínhamos segurança para escalar e descer as cachoeiras, para coletar os vetores. Eu, como fiel caçador, acompanhava ele”. As cachoeiras eram o lugar preferido para as pesquisas, porque o pium da Amazônia vive em águas limpas, claras e correntes, e ali são encontrados em grande quantidade.


Ulysses relembra um dos momentos mais entusiasmados da sua convivência com Py-Daniel. A primeira foi “quando ele [Py-Daniel] descobriu uma espécie nova de pium, denominando-o em homenagem pelo trabalho do parceiro nas expedições: era uma espécie que ainda não estava descrita na literatura científica, e que ficou denominado de Coscaroniellum ulyessesi, em homenagem a mim. O segundo momento foi quando eu estava trabalhando no rio Guaporé, em Rondônia, e descobri uma nova espécie de pium, e em homenagem ao Py-Daniel, dei o nome de Cerqueirellum pydanieli.”


“São essas coisas boas que eu tenho que guardar. Nós dois estamos perpetuados na ciência com as nossas descobertas. A contribuição é que essas espécies são nossas descobertas dos nossos estudos, aqui na Amazônia. O Py-Daniel, além de ser meu orientador, era meu compadre, irmão, amigo e companheiro de vida. Eu tive grande prazer de trabalhar com ele por 40 anos. Ele se aposentou em 2010 e eu continuo no laboratório de epidemiologia, dando prosseguimento a tudo o que ele idealizava e criou na linha de pesquisa entomológica, na área da saúde. Depois de aposentado, ele estava morando na Chapada dos Veadeiros e tinha atividades na UnB. Com o agravamento da doença foi para Brasília se tratar”.


A parceria com um fotógrafo registrando tudo

Pico da Neblina (Foto: FAB)


O italiano fotógrafo e ecologista Leo Príncipe (70 anos), está há 40 anos no Brasil. Há 30 anos chegou na Amazônia e teve Victor Py-Daniel como primeiro amigo. Logo que chegou a Manaus, foi convidado a realizar uma expedição com o pesquisador. Depois da primeira viagem, vieram outras, e eles criaram uma grande amizade, que segundo Leo continua, porque o amigo somente mudou de plano, mas permanece (continua) compartilhando as experiências com ele. Com as fotos tiradas durante as expedições com Py-Daniel, Leo criou um banco de imagens sobre a Amazônia.


“Nosso primeiro contato foi para fazermos uma expedição ao Pico da Neblina. Eu e o Vítor andávamos por essa Amazônia fazendo pesquisa, expedições: ele com a ciência dele, e eu com a minha fotografia. Quando fiquei sabendo que ele foi internado no hospital, senti uma grande tristeza. Faz uns dez dias, uma semana… eu nem sabia. Ele fez um trabalho de dedicação muito grande. Ele estudava mosquito, mas estudava também a relação de como o mosquito podia afetar a vida humana. Ele estudava esse bicho para prevenir a oncocercose, uma doença muito grave, que dá cegueira. Isso era muito forte, na cabeça dele: como o animal se reproduz, como transfere para os humanos a doença. Mas a paisagem que ele usava para pesquisar era onde tinha mais mosquitos na Amazônia, e eram lugares com muitas dificuldades de movimentação, para se viver e para comer.


Leo relembra as dificuldades que eles enfrentavam nos lugares mais inóspitos da floresta amazônica, e de como Py-Daniel procurava, com humor, transformar os desafios em momentos alegres, que fortaleceram a amizade entre os dois: “Nós vivíamos na floresta mesmo! Nesses momentos, nós desenvolvemos a amizade, a alegria, para sustentar as dificuldades do ambiente. Nós brincávamos muito, exatamente para conseguir superar essas dificuldades. Além disso, nós tínhamos uma busca espiritual comum: saber questões importantes sobre quem somos, onde vamos, qual a nossa função, o que podemos fazer para melhorar o mundo. Isso era uma parte muito forte da nossa amizade.”


O respeito à vida e à cultura dos povos indígenas

Victor Py-Daniel entre indígenas (Foto: Ulyses Barbosa/Inpa)


A antropóloga e linguista Ana Carla dos Santos Bruno, 49 anos, pesquisadora do Inpa há 17 anos, começou a trabalhar com Py-Daniel no Programa Amazonas de Apoio à Pesquisa em Políticas Públicas em Áreas Estratégicas. Era um programa realizado em parceria com a Fundação Estadual dos Povos Indígenas (FEPI), com o aporte financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam). Ana Carla estava envolvida com as questões de educação, língua indígena e cultura, e relata como via a forma como o pesquisador Py-Daniel realizava seu trabalho científico com os povos indígenas.


“O Py-Daniel foi o grande articulador desse convênio. Ele já trabalhava com os Yanomami e diversas etnias indígenas. Eu observei a soma de compromisso e ética que ele tinha. Além da questão científica, ele tinha um compromisso com a questão indígena. Para ele, não era somente fazer pesquisa por pesquisa, mas atender às demandas e dar atenção à questão da saúde indígena. Ele estava muito atento para a questão da forma de viver dos índios, do respeito à língua, à cultura, e à forma como eles viviam. Isso me deixou admirada com o trabalho dele, observando como ele dialogava com os indígenas e então nos tornamos aliados nessa problemática”.

“Ele tinha muito compromisso com a questão e com a vida indígena. Tinha muito respeito. Eu acho que não existe ciência sem compromisso, e Py-Daniel mostrou o respeito aos grupos étnicos com os quais ele trabalhava. Isso fazia a ciência ser muito mais rica, pelo respeito que ele tinha pelos outros. Ele tinha muito disso. Quando ele se aposentou, eu pensei que tinha perdido um aliado; mas mesmo distante, ele mantinha o contato comigo e com a dra. Noêmia Ishikawa, que ficamos no Inpa, dando continuidade ao trabalho que ele fazia, contribuindo com as nossas áreas de atuação”.


Refletindo sobre o que vivenciou na relação com indígenas nas pesquisas científicas e o que aconteceu no dia 22 de junho, em Brasília, quando policiais atacaram indígenas – que estavam se manifestando pacificamente contra o Projeto de Lei 490, que altera as regras de demarcação dos territórios indígenas –, Ana Carla diz: “É desolador como os direitos territoriais e sociais dos indígenas estão sendo violados, de forma inimaginável no momento presente. Mas mesmo num cenário de calamidade pública, os indígenas continuam resistindo porque território é vida”.


Este texto foi atualizado para corrigir o dia do falecimento de Victor Py-Daniel.

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