Como o governo desconsiderou quase 400 indígenas mortos por Covid-19
Nos dois anos de pandemia, o atendimento médico de indígenas pela Sesai só ocorreu para a população que vive em territórios demarcados. Na imagem acima, o velório do Cacique Messias no Parque das Tribos, em Manaus
Por Edda Ribeiro para Amazonia Real
Manaus (AM) – No dia 13 de maio de 2020, o cacique Messias Martins Moreira Kokama morria por complicações da Covid-19. A pandemia já contabilizava mais de 13 mil mortos e o líder Kokama era um das vítimas. Pouco mais de dois anos se passaram, mas até hoje a odontóloga Mirian Moreira não se conforma ao falar da morte do pai. Perante o governo brasileiro, Messias Kokama não era um indígena. Quase 400 indígenas estão na mesma situação por não morarem em terras homologadas.
“O indígena não deixa de ser indígena quando sai do seu local (aldeia) para vir para o meio urbano”, protesta Mirian Moreira. O seu pai era cacique do Parque das Tribos, em Manaus, um dos locais onde a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas no Brasil, nunca prestou assistência.
A explicação para a falta de assistência, segundo a Sesai, é que “os indígenas que residem nas cidades são atendidos pelas Secretarias Municipais de Saúde, conforme determina a legislação brasileira, e desta forma, os números referenciados entram nos cálculos gerais da população brasileira do Sistema Único de Saúde (SUS)”.
Além da falta de atendimento médico, a Sesai também deixou de contabilizar dados a respeito de infectados e mortos em decorrência do coronavírus. Conforme dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que realiza um monitoramento próprio das vítimas da pandemia, são 71.592 casos confirmados e 1.310 óbitos entre indígenas brasileiros.
Já a Sesai, conforme publicado no portal do governo federal, com última atualização em 30 de maio, há 65.695 casos de covid-19 entre indígenas confirmados e 914 óbitos. As informações são obtidas de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis). Em número de casos confirmados, a disparidade passa de 5.890.
“Essa omissão na produção de dados a respeito de indígenas não aldeados, residentes em contexto urbano, trata-se de uma descaracterização étnica”, explica o advogado da Apib, Eloy Terena. “Isso acarreta o impedimento do gozo dos mesmos direitos que todo e qualquer povo indígena possui.”
Segundo dados apurados pela Gênero e Número, no Brasil, são 896,9 mil indígenas, sendo 36% em áreas urbanas. O Amazonas é o estado com a maior população indígena no país, sendo que na capital são 168.680 indígenas (Censo IBGE de 2010).
“Povos indígenas localizados em contexto urbano também constituem povos indígenas e que o fato de se localizarem em área urbana pode-se dar devido a diversos fatores, como o avanço das cidades, a necessidade de deslocamento de lideranças, a busca de escolas ou de empregos, entre outros. Residir em área urbana não faz com que a pessoa deixe de ser indígena, nem mesmo implica a inexistência de necessidades culturais”, completa o advogado.
A subnotificação dos dados interfere na implementação do Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros, cobrado no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709. “Enquanto não possuímos os dados concretos e direcionados, não temos como contrapor o que o governo vem alegando que está fazendo”, defende Eloy Terena.
A liderança Terena lembra que, para além das fragilidades já enfrentadas há anos pelas equipes do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, na execução da política anti-indígena do presidente Jair Bolsonaro (PL), a Sesai expôs indígenas ao vírus. Houve até recomendação para que indígenas contaminados permanecessem em quarentena domiciliar, em contato com outros parentes. O órgão também negou atendimento a indígenas que vivem nas cidades e ignorou a importância na testagem.
Segundo dados do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena da Apib, 162 povos foram diretamente afetados pela pandemia de covid-19. A despeito da diversidade étnica existente no Brasil, os grupos nos quais as perdas foram maiores e mais significativas guardam algumas semelhanças importantes entre si, avalia Paulo Cesar Basta, médico e pesquisador em Saúde Pública da ENSP – Fiocruz.
“A presença de madeireiros, garimpeiros e grileiros nos territórios tradicionais atuando como vetores de transmissão do novo coronavírus; o acometimento de pessoas que vivem em aldeias localizadas em áreas geográficas de difícil acesso, nas quais os equipamentos de saúde e a infraestrutura são precários; a distância de unidades de saúde e hospitais de referência dificulta a remoção de pacientes graves, e entre os povos que têm longa história de contato com a sociedade envolvente”, contextualiza Paulo Basta.
Como exemplos de povos mais afetados, o pesquisador cita os Kokama que vivem às margens do Rio Solimões, os povos que habitam a região do Rio Negro, no Amazonas; os Makuxi, Wapichana e Yanomami, que vivem no Estado de Roraima; o povo Guajajara, no Maranhão; o povo Xavante, que vive em Mato Grosso; o povo Paiter Suruí, em Rondônia; e o povo Guarani-Kaiowá, que vive em Mato Grosso do Sul.
O desencontro de informações sobre a doença teve início já nos primeiros meses da crise pandêmica. Na região amazônica a primeira morte por Covid-19 entre indígenas brasileiros foi registrada em 19 de março, no Pará. No entanto, o nome de Lusia dos Santos Lobato, de 87 anos, do povo Borari, não consta na estatística do Ministério da Saúde como indígena já que ela morava fora de aldeia reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pela Política Nacional de Saúde Indígena da Sesai.
Segundo a Sesai, o primeiro caso de uma pessoa indígena do país contaminada pelo novo coronavírus foi o de Suzane da Silva Pereira, uma jovem de 20 anos de idade da etnia Kokama, na região do Alto Solimões, no Amazonas. Suzane, que é agente indígena de Saúde, teve a infecção confirmada em teste realizado no dia 31 de março de 2020, após contrair o vírus de um médico infectado que integra a equipe do Dsei Alto Solimões. A confirmação da infecção foi divulgada pela Sesai no dia 1º de abril.
Em outra reportagem publicada pela agência Amazônia Real, foi contado que a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) decidiu buscar informações sobre a pandemia do novo coronavírus de distintas formas desde março de 2020, o estopim do vírus no Brasil. O informativo “Covid-19 e Povos Indígenas da Amazônia Brasileira”, divulgado semanalmente nas redes sociais da organização, é um contraponto às informações fornecidas pela Sesai, do Ministério da Saúde.
Na segunda onda da doença na capital amazonense, lembra a filha do Cacique Messias, a situação piorou. “Muitos indígenas não tinham condições de ir até a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) ou para hospitais. Lembro bem do meu irmão saindo na madrugada debaixo de chuva para levar os parentes”, relata.
Em resposta à ausência de tratamento de saúde na capital, o cacique e outras lideranças, além de moradores da comunidade, ergueram a Unidade de Apoio aos Povos Indígenas (Uaspi), uma área de saúde que, em pouco mais de dois meses, realizou cerca de 300 atendimentos. Miquéias Kokama, filho de Messias, assumiu a liderança do projeto e do Parque.
O local utilizado para a Uaspi foi um terreno cedido pela igreja que já existia no bairro. Lona para cobertura, macas, remédios, oxigênio e EPIs (equipamentos de proteção individual) ainda estavam em falta, e foi apenas com campanhas nas redes sociais que os voluntários deram forma aos atendimentos, recebendo inclusive indígenas moradores de outros bairros além do Parque das Tribos.
Também moradora do Parque das Tribos, Vanda Ortega Witoto, técnica de enfermagem que ficou internacionalmente conhecida pelo trabalho de saúde indígena, foi uma das primeiras lideranças de contexto urbano a denunciar a ausência de políticas de saúde das autoridades brasileiras durante a pandemia. Ela lembra que, desde 2014, quando o Parque das Tribos foi criado, o atendimento pelo governo federal já era inexistente, e a população totalmente desassistida. Tal crise veio à tona com mais força no período da pandemia.
Ela diz que quando os moradores do Parque das Tribos pediam apoio, as autoridades municipais de saúde se recusavam, dizendo que essa função era da Sesai. Ao mesmo tempo, a própria Sesai também recusava atendimento aos indígenas de contexto urbano.
“Até ambulâncias foram negadas pela saúde municipal. Diziam para nós que era a Sesai que deveria atendia os indígenas”, relata a técnica de enfermagem, mostrando a situação preocupante, na qual os indígenas que moravam em Manaus não eram atendidos nem pelas autoridades municipais, nem pela federais.
A morte de Messias Kokama, segundo ela, foi um dos marcos mais trágicos para moradores do Parque das Tribos. “Parentes morreram e foram enterrados como ‘pardos’, sem identificação étnica.”
A vacinação também não chegou em tempo hábil. Sem serem atendidos como prioridade das campanhas vacinais, mesmo com a determinação do Ministério Público Federal, os moradores de contexto urbano ficaram para trás na fila de espera. “A imunização contra a Covid-19 chegou em atraso, e só chegou antes para vacinar os mais velhos, e não por serem indígenas”, contou Vanda.
O pesquisador Paulo Basta afirma que a lentidão das campanhas de imunização entre os indígenas resultaram em mais vítimas. “Alguns epidemiologistas afirmam que o atraso do Brasil em iniciar a imunização contra a covid-19 foi responsável por um excesso de 400 mil óbitos na vigência da pandemia. A despeito de os indígenas que vivem em territórios demarcados e homologados pela Funai terem sido incluídos como grupos prioritários no início da campanha de vacinação, em 2021, não há dúvidas de que o excesso de mortalidade por ausência de vacinas também afetou os povos originários”, ressalta.
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